terça-feira, 24 de janeiro de 2012
SÃO PAULO, CIDADE LOUCA E ERRANTE (MARLI GONÇALVES)
Já pensei em fazer música, já pensei até em uma campanha por você. Já disse que te amo em mais de uma língua. Este ano quero cantar Parabéns pra Você, por tudo que tem, e por (conseguir) continuar viva e tentando ser amada. Ou, pelo menos, respeitada. Nossa velha dama, São Paulo.
São Paulo é uma prostituta grande, forte, experiente. Ensina seus meninos a crescer, impõe que lhe paguem pelo prazer que dá. É maltratada, mal falada, e mesmo assim continua aberta recebendo todos 24 horas por dia. Tem horas que nem a maquiagem pesada disfarça seu cansaço, e ela se deixa levar, arrasada. Mas logo se recupera, não para, não para, e volta ao trabalho, à efervescência. Na vida toma muitos sustos, vê muita violência ao seu redor, o mundo cão que mija em seus postes ou pernas, mas também vive o glamour e o luxo quando o cliente que a consome é generoso.
Ela anda úmida, molhadinha, até encharcada neste verão. Suas férias foram curtinhas, e ela tinha se enfeitado toda para brilhar à noite neste fim de ano. Mas a abandonam pelo Sol, pela praia, por um tal ar puro e, se lá onde tem essas coisas, também chove, seus amantes voltam correndo. Aqui se come melhor. Se diverte mais. Se aprende mais em filmes, livros, teatro, cultura. Inclusive, os seus cafetões exigem que a cidade volte logo a trabalhar. E ela vende o que tem de melhor, mesmo que mecanicamente, sem se entregar totalmente.
Nem bonita, nem feia, nem totalmente um ou outro, apenas uma cidade armada ao lado de um pátio há 458 anos, e que bem que podiam ter escolhido melhor local para arriar acampamento... mais para perto do mar. Fosse assim, o Rio de Janeiro teria dançado e ela, sim, seria a Maravilhosa. Mas cresceu para os lados, para cima, e até para baixo, por baixo, suas entranhas, e hoje essas veias já vão se entupindo.
Ela vai se aguentando assim e a pega a bolsinha e vai rodar pelas esquinas. Quase não tem horizontes para ver nem para se ver, faz isso apenas em poucos espelhos de água limpa que encontra, quando passa pelos poucos parques, em busca de ar, da cor verde, de um pouquinho de natureza. Nos rios, tão sujos, nem ela consegue se mirar. Apenas tapar o nariz, nestes que viraram banheiros públicos, descargas sem fim. E ela sonha: no dia que os rios voltarem navegará neles todos os fins de semana, vendo muitas famílias felizes. Não custa sonhar.
Quando procura o céu para ver as estrelas ou a lua essa nossa cidade vagabunda apenas sorri e lembra do macaco do filme King-Kong. Tem vontade de pegar os helicópteros na mão - parecem brinquedos passando por sua cabeça. Quem os controla? São tantos! E os aviões, então! Ronco constante indo e vindo, brilhando mais alto. E a cidade sonha: quem está indo, quem está chegando?
Às vezes a cidade fala sozinha enquanto caminha e é caminhada. Às vezes se detém conversando com bronzes, bustos, criações em concreto, estátuas imortais e históricas, esculturas instaladas para lembrar de algo, alguém, alguma coisa, algum fato seu ou feito de alguns dos seus tantos amantes. Será por amor a ela que construíram tanta coisa bonita¸ subiram tantos arranha-céus, pensaram mansões, fizeram tantas jóias para enfeitá-la? Seus colares são marginais, e a enfeitam com rodoaneis, trilhos, pontes, túneis e viadutos. Se foi por amor, estranho, qual sentimento levou a que ela também tenha tantas chagas, plagas indizíveis, cicatrizes, e miséria e horror?
Nossa velha puta muda de ponto. Norte, Sul, Leste, Oeste. Clientes diferentes a consomem. Tem hora que ela dá mais para um do que para outro. Mas atende a todas as raças, etnias, nacionalidades¸ falando todas as línguas de um jeito muito seu, assim como o próprio português. Ela marca os erres. Come os esses. Mistura tendências, bebidas, sotaques, povos e palavras. Chopps. Pastel. Pizza. Macarrão. Virado.
Ultimamente, nossa velha anda contente. Uma feliz cidade. É que no verão de uns tempos para cá - antes não era assim - vê mais carnes, dorsos, pernas, colos, descobertos, nus. E até chinelo de dedo nem é mais tão proibido assim! Quase chora é quando pensa no inverno que quando faz frio mesmo chega a ser cortante, e as pessoas são cebolas vestidas, que vão se descascando, algumas elegantes, e outras não, nem pensam em combinar, a não ser com o destino, para não morrerem de frio. Cores e nomes, como não disse o Caetano que viu a deselegância discreta de nossas meninas. Aqui se usa muito preto. Preto e estampas. As mulheres amam as estampas e os homens, as listras. Se vê mesmo de tudo por aqui, observa. E assim as flores nascem nos vestidos e, ainda, nos canteiros, nas árvores que os cupins ainda não pegaram nem ventos derrubaram, flores que enfeitam um pouco mais a sua aridez cinzenta em vasos.
A velha senhora continua olhando suas entranhas e com minhoquinhas na cabeça. Quer derrubar minhocões. Fazer uns puxadinhos. Pensa em como se manter limpa, com tantos clientes, sem tempo que não o dos banhos da chuva, sem sabão, sem perfume. Assim não pode nem cobrar o que merece pelos seus serviços.
Mais um aniversário. Será imortal? Serão várias vidas? Qual música tocará para ouvir quando e se as britadeiras, buzinas, sirenes e tantos barulhos deixarem? Que ritmo vai tocar, dançar, que moda vai criar, de quem vai depender?
De repente, essa nossa amiga fica preocupada. Lembra que nesse ano vai ter eleição e lá vai o seu destino para o jogo novamente; seu santo nome será falado, pisado, sua história revista, criticada. Vários aventureiros tentarão conquistá-la, veja só.
Mas tudo bem. O importante é que essa cortesã ainda dá um bom caldo, e é cobiçada por membros imponentes.
* Marli Gonçalves é jornalista.
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